1. Sinhá
Nem o perfume que expira
A flor, pela tarde amena,
Nem a nota que suspira
Canto de saudade e pena
Nas brandas cordas lira;
Nem o murmúrio da veia
Que abriu sulco pelo chão
Entre margens de alva areia,
Onde se mira e recreia
Rosa fechada em botão;
Nem o arrulho enternecido
Das pombas, nem do arvoredo
Esse amoroso arruído
Nem esta saudade pura
Do canto do sabiá
Escondido na espessura,
Nada respira doçura
Quando escuta algum segredo
Pela brisa repetido;
Como o teu nome, Sinhá!
2. A caridade
Ela tinha no rosto uma
expressão tão calma,
Como o sono inocente e
primeiro de uma alma,
Donde não se afastou ainda o
olhar de Deus;
Uma serena graça, uma graça
dos céus,
Era-lhe o casto, o brando, o
delicado andar,
E nas asas da brisa iam-lhe
a ondear
Sobre o gracioso colo as
delicadas tranças.
Levava pelas mãos duas
gentis crianças.
Ia caminho. A um lado ouve
magoado pranto,
Parou. E na ansiedade ainda
o mesmo encanto
Descia-lhes às feições.
Procurou. Na calçada
À chuva, ao ar, ao sol,
despida, abandonada,
A infância lacrimosa, a
infância desvalida,
Perdia leito e pão, amparo,
amor, guarida.
E tu, ó caridade, ó virgem
do Senhor,
No amoroso seio da crença
tomaste,
Entre beijos – só teus – o
pranto lhe secaste
Dando-lhes pão, guarida,
leito e amor.
3. O Verme
Existe uma flor que encerra
Celeste orvalho e perfume.
Plantou-a em fecunda terra
Mão benéfica de um nume.
Um verme asqueroso e feio,
Gerado em lodo mortal,
Busca esta flor virginal
E vai dormir-lhe no seio.
Morde, sangra, rasga e mina,
Suga-lhe a vida e o alento;
A flor o cálix inclina;
As folhas, leva-as o vento;
Depois, nem resta o perfume
Nos ares da solidão...
Esta flor é o coração,
Aquele verme o ciúme.
4. Livros e flores
Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?
Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?
5. Luz entre sombras
É noite medonha e secura,
Muda como o pensamento,
Uma só no firmamento
Trêmula estrela fulgura.
Fala aos ecos da espessura
A chorosa harpa do vento,
E num canto sonolento
Entre as árvores murmura.
Noite que assombra a
memória,
Noite que os medos convida,
Erma, triste, merencória.
No entanto... minh’alma
olvida
Dor que se transforma em
glória,
Morte que se rompe em vida.
6. Circulo Vicioso
Bailando no ar, gemia
inquieto vaga-lume:
−“Quem me dera que fosse
aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul,
como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a
lua, com ciúme:
− “Pudesse eu copiar o
transparente lume,
Que, da grega coluna à
gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a
fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol,
com azedume:
− “Mísera! Tivesse eu aquela
enorme, aquela
Claridade imortal, que toda
a luz resume!”
Mas o sol, inclinado a
rútila capela:
− “Pesa-me esta brilhante
auréola de nume...
Enfara-me esta azul e
desmedida umbela...
Por que não nasci eu um
simples vaga-lume?”
7. Mundo interior
Ouço que a natureza é uma
lauda eterna
De pompa, de fulgor, de
movimento e lida.
Uma escala de luz, uma
escala de vida
De sol à íntima luzerna.
Ouço que a natureza, − a
natureza externa, −
Tem o olhar que namora, e o
gesto que intimida,
Feiticeira que ceva uma
hidra de Lerna
Entre as flores da bela
Armida.
E contudo, se fecho os
olhos, e mergulho
Dentro de mim, vejo à luz de
outro sol, outro abismo
Em que um mundo mais vasto,
armado de outro orgulho,
Rola a vida imortal e o
eterno cataclismo,
E, como o outro guarda em
seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que
desfia, − e dorme.
8. Suave mari magno
Lembra-me que, em certo dia,
Na rua, ao sol de verão,
Envenenado morria
Um pobre cão.
Arfava, espumava e ria,
De um riso espúrio e bufão,
Ventre e pernas sacudia
Na convulsão.
Nenhum, nenhum curioso
Passava, sem se deter,
Silencioso,
Junto ao cão que ia morrer,
Como se lhe desse gozo
Ver padecer.
9. A uma senhora que me pediu versos
Pensas em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.
Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.
Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas já ressequidas.
Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez.
Para outras vidas.
10. No alto
O poeta chegara ao alto da
montanha,
E quando ia a descer a
vertente do oeste,
Viu uma coisa estranha,
Uma figura má.
Então, volvendo o olhar ao
subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de
baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.
Como se perde no ar um som
festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento em vão,
Ariel
se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para
descer a encosta
O
outro lhe deu a mão.